30 anos da Constituição Federal e os rumos da democracia é tema de entrevista de professor da UFLA
Nas últimas três décadas, o Brasil consolidou o voto direto, realizou sete eleições presidenciais com alternância de partidos políticos no poder, garantiu a independência de suas principais instituições, cresceu economicamente e ampliou os direitos sociais. A maturidade do regime democrático ainda foi medida com cidadãos cobrando uma pauta diversificada de reivindicações, entre elas mais transparência. Por outro lado, ainda falta garantir direitos civis básicos e o país continua vítima da violência e corrupção. Esse é o Brasil depois de 30 anos da promulgação da Constituição 1988. No balanço do período, avanços e crises marcaram a democracia brasileira, tema da entrevista com o professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras, Marcelo Sevaybricker.
- A Constituição brasileira completa 30 anos. A Carta Magna foi a grande conquista? Depois de 21 anos de ditadura militar no Brasil, a Carta de 88 consolidou a aspiração e a luta de vários atores e movimentos sociais que combatiam não apenas a repressão e o autoritarismo, mas vários problemas do país que tiveram sua solução ou encaminhamento interrompido com o golpe de 1964. Além disso, ela criou um importante horizonte de expectativas a partir do qual antigos, mas também novos atores e movimentos sociais emergiram na cena pública nacional, com novas pautas e reivindicações.
- E qual é a principal falha? Acho que não foi ter efetivado material e especificamente alguns direitos e políticas públicas, que ficaram aguardando legislação especial, como, por exemplo, a tributação de grandes fortunas e heranças, que poderia tornar a sociedade brasileira um pouco menos injusta. Mas é preciso ponderar também a correlação de forças progressistas no país, no final dos anos 80, para avaliar em que medida essa efetivação seria factível.
- A Constituição assegurou efetivamente direitos fundamentais? Sim e não. É fato que alguns direitos, como o do voto, passaram a ser gozados, de fato, universalmente. Outros, até mais elementares (como acesso à justiça), ainda são privilégios de algumas classes e raças no país. Ainda convivemos com cidadãos de primeira e de segunda classe em pleno século XXI, o que é uma lástima.
- Qual é a importância do processo democrático brasileiro? A manutenção da democracia é crucial. Há que se lembrar da famosa frase do Churchill, de acordo com a qual a democracia é a pior das formas de governo, com a exceção de todas as outras. No contexto das sociedades modernas, a democracia eleitoral – ainda que não seja condição suficiente para resolução de todos os problemas comuns do povo – certamente é mais capaz, do que qualquer outra forma de governo de garantir os direitos fundamentais, que você mencionou, promover bem-estar, etc. Nesse cenário atual em que normas constitucionais são violadas, em que os resultados eleitorais não são plenamente respeitados, em que cidadãos e cidadãs, paradoxalmente, saem às ruas pedindo a volta dos militares, creio que deveríamos pensar e falar mais seriamente sobre as vantagens de se viver em uma democracia. E se a gente considerar a história da política brasileira, fica evidente que a democracia é uma nota de rodapé. Nós não vivemos sob regime democrático na maior parte da histórica do país. Também por isso, devemos valorizar o que conquistamos de 1980 pra cá.
- Em que estágio está a democracia brasileira? Amadurecemos enquanto uma nação democrática? Nas últimas três décadas, nós tivemos um processo de expansão dos partidos, que se consolidaram como instituições de representação em nível nacional. O eleitorado cresceu. Consolidou-se um sistema que ainda que não seja rigorosamente bipartidário, acabou se tornando efetivamente quase bipartidário, ou seja, entre duas siglas (PSDB e PT). Segundo especialistas, isso é também indício de uma estabilização do regime democrático brasileiro. Também avançamos na garantia de direitos sociais. No século XX e XXI, o regime democrático é associado à promoção de certos direitos sociais. A ideia de que além de garantir os direitos fundamentais, como políticos, de participação política, e os civis, também é necessário garantir um mínimo de justiça social.
- Crises políticas comprometem a democracia ou são passageiras? Na medida que é um sistema de aberta contestação pública - diferentemente de uma ditadura por exemplo - a democracia está inerentemente mais suscetível a crises. Isso faz parte da natureza democrática, inclusive a existência de grupos antidemocráticos faz parte. Então, faz parte da história da democracia vivenciar crises. Por exemplo, logo após o processo de redemocratização do País, no início dos anos 1990, nós elegemos um presidente da República – Fernando Collor de Melo - e em seguida vivenciamos um processo dramático de crise com o impeachment dele, mas que conseguiu se solucionar sem colocar em risco o próprio sistema. A questão é saber avaliar a natureza da crise que vivenciamos hoje e que saída podemos encontrar, factualmente, para ela.
- Para onde vai a democracia brasileira? É muito difícil fazer qualquer prognóstico. Qualquer tipo de previsão da democracia brasileira hoje, em pleno 2018, dado o grau recente de instabilidade das instituições políticas. O cenário político brasileiro nos últimos anos se deteriorou com muita força e rapidez. As instituições políticas (partido, Executivo, Congresso Nacional, Judiciário) não têm se comportado dentro de uma normalidade, de certo padrão, o que torna difícil para qualquer analista da política fazer uma previsão razoável do que está por vir. Nesse aspecto, destacaria dois fenômenos que indicam um cenário pouco promissor da democracia nacional: de um lado, uma crescente ilegitimidade da classe política e das instituições políticas, tais como os partidos e o Congresso Nacional e, de outro lado, um processo de judicialização da política e de politização do judiciário, do qual a Lava-Jato é a maior expressão. O resultado, a curto prazo, desses dois fenômenos, é de aprofundamento da incapacidade das instituições de processarem o conflito e da maior probabilidade de soluções antidemocráticas, como temos visto.
- É ano eleitoral. Quais são os maiores desafios para os partidos e candidatos? Independentemente de o cidadão se situar ao centro, à esquerda ou à direita, já seria uma meta razoável garantir a realização das eleições. Um dos grandes desafios é manter o calendário eleitoral com o mínimo de respeito às regras eleitorais. Alterações propostas no calor do momento – como adoção de semi-presidencialismo, ou a proibição de certas candidaturas – serão sempre interpretadas como soluções de conveniência e tenderão a tirar a legitimidade daqueles que saírem vitoriosos no pleito deste ano. Um sistema democrático é aquele no qual os indivíduos podem competir pelo poder segundo regras claras e respeitadas por todos participantes. E, num regime democrático, os perdedores de uma eleição tendem a aceitar a derrota. Ele entende que daqui a quatro anos poderá competir novamente e, portanto, concorda com o mandato do adversário. Com a realização das eleições, talvez as instituições políticas que estão deterioradas possam se recuperar. Isso pode gerar um cenário institucional um pouquinho melhor do que temos agora.
- De que forma o eleitor deve se blindar da disseminação de notícias falsas, as chamadas "fake news" nas redes sociais, para não ser vítima de informações sem credibilidade? Se a gente considerar que a televisão está em 98% dos lares do Brasil e a internet apenas em metade deles, é preciso reconhecer que os grandes meios de comunicação ainda têm um impacto e poder ideológico muito forte. Com o surgimento das novas mídias e fontes alternativas de informação criou-se uma imprevisibilidade. De qualquer modo, o eleitorado brasileiro não é tão preparado para o exercício do voto. Não temos trinta anos de prática democrática ininterrupta. E o aprendizado do voto exige a decantação de uma cultura, valores, hábitos, etc. Além disso, nós não temos do ponto de vista educacional qualquer tipo de discussão e preparação mais sistemática. Por exemplo, a escola básica é absolutamente precária e vive condições deletérias de funcionamento. Que eleitor é esse que majoritariamente se forma nas escolas brasileiras? Que tipo de informação ele tem? Que capacidade crítica de analisar as informações? Infelizmente, o eleitor será refém das notícias fantasmas e toda forma de manipulação que possam aparecer em 2018. Não existe milagre e o que se fazer para deixar o eleitor prevenido em relação às notícias falsas, enquanto o Brasil não apostar mais em desenvolver uma política educacional séria de longo prazo para todos os cidadãos. Agora, é bem verdade, como notou a filósofa alemã Hannah Arendt, que a mentira é parte integrante da política. Assim, mais uma vantagem de viver em uma sociedade democrática é que essa mentira é constantemente posta à prova e não se tem um controle hegemônico da circulação de informações.
- Nos últimos anos, a população ocupou as ruas em defesa de várias pautas. Na sua avaliação, a democracia brasileira será marcada pelo crescimento da pluralidade de atores e demandas? Pode haver uma maior pluralidade, mas acredito que estamos num momento de crise da democracia nacional e não de expansão do regime democrático. Temos um conjunto de problemas absolutamente prioritários que não foram solucionadas, como por exemplo as grandes desigualdades sociais no país, e pautas mínimas como a universalização dos direitos civis básicos. Um trabalhador brasileiro, numa grande cidade do país, não sabe se o policial que fiscaliza a rua é seu protetor, ou o seu inimigo. Além disso, essas novas demandas, como as causas associadas ao movimento contra a homofobia, por exemplo, estão vivendo um processo reativo de questionamento público muito forte, o que, é verdade, não é uma particularidade do nosso país. O assassinato recente da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, é prova de que a reação a essas demandas pode se tornar absolutamente violenta.
- Qual será o tema mais sensível no processo eleitoral de 2018? Em primeiro lugar, a economia. O que vai dividir os candidatos e servir de critério para a escolha do eleitor é a capacidade do presidenciável melhorar as condições econômicas do país: aumentar o emprego, controlar a inflação, promover políticas de habitação popular. Além disso, dado que a discussão sobre política no país, nos últimos anos, foi muito centralizada em torno à questão da corrupção e que os principais quadros dos mais importantes partidos estão sendo associados a escândalos de corrupção, creio que esse tema também produzirá algum efeito na cabeça de determinados seguimentos do eleitorado. E, penso, que um efeito, em geral, ruim, pois acaba produzindo a sensação de que todos políticos profissionais são corruptos. Isso pode incitar o eleitor a anular o seu voto, ou a escolher alguém pela simples razão desse se apresentar como honesto. O problema é que política não é moral. Não basta ser honesto. O grande número de candidatos que se apresentam como não-políticos é sintoma desse fenômeno. O surgimento de novos partidos, que se autodeclaram diferentes dos partidos tradicionais, também.
Pollyanna Dias, jornalista- bolsista Dcom/Fapemig