Biofortificação de alimentos é a aposta no combate à fome oculta
Micronutrientes como iodo, zinco e selênio são testados para a produção de “superalimentos”.
Imagine comer arroz e feijão com muito mais nutrientes. E se acrescentássemos no prato carnes e hortaliças também enriquecidas? Se fosse assim, em uma única refeição, a disponibilidade de nutrientes nos alimentos possibilitaria o consumo das quantidades diárias de iodo, zinco e selênio necessárias para a prevenção de doenças. Seria impossível? Não.
Entramos na era da Agricultura Funcional, período que se baseia na produção mundial de alimentos funcionais, ou seja, aqueles que oferecem benefícios adicionais para a saúde, além das funções nutricionais básicas. Esses “superalimentos” trazem bônus ao organismo: ação antioxidante, melhora da pressão sanguínea, redução dos níveis de colesterol e doenças cardiovasculares, diminuição do risco de doenças crônicas degenerativas, como câncer e diabetes.
Para se chegar a essa realidade, o trabalho dos cientistas começa em laboratórios, onde são identificadas as plantas com os melhores genes ou genótipos para absorção do máximo de nutrientes do solo – uma das características da chamada biofortificação genética. “Entre as diversas plantas, descobrimos e selecionamos quais delas possuem maior teor de nutrientes e aquelas com capacidade de acumulá-los”, informa o professor Luiz Roberto Guimarães Guilherme, do Departamento de Ciência do Solo (DCS) da UFLA.
O pesquisador coordena, no Brasil, em parceria com a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), uma rede internacional de pesquisas sobre a biofortificação de alimentos, conhecida como HarvestZinc. Juntos, cientistas de 13 países propõem soluções para aumentar a produtividade, ao mesmo tempo em que se eleva a qualidade nutricional das partes comestíveis das plantas.
Diversas pesquisas em solo brasileiro têm testado a adição de elementos como iodo, selênio, ferro, zinco e enxofre às culturas. Na UFLA, há cerca de dez anos são feitos testes de enriquecimento de nutrientes em arroz, soja, feijão, milho, hortaliças, entre outros.
Como é feita a biofortificação agronômica?
Na tentativa de reverter a falta de nutrientes encontrados nos solos agricultáveis no Brasil, pesquisadores apostam na biofortificação agronômica de alimentos - técnica que visa a adicionar, por manejo de adubação, os nutrientes no solo ou diretamente nas folhas das plantas. A finalidade é que eles sejam absorvidos e acumulados nas culturas agrícolas, aumentando o teor desses nutrientes para a alimentação humana e animal. A alternativa busca investir na elaboração de fertilizantes enriquecidos, que estimulam o crescimento das plantas e oferecem maior teor de nutrientes para os alimentos.
Esse tipo de biofortificação consiste nas estratégias de adubação, seja na folha, seja no solo, que possibilitem a acumulação de nutrientes pelas plantas, independentemente se elas passaram ou não por seleção genética. “Se trabalharmos com as duas estratégias de forma conjunta, selecionando plantas que acumulam mais nutrientes e exploramos ao máximo o potencial delas”, explica o pesquisador da Epamig, Fábio Aurélio Dias Martins.
A aplicação pode ser realizada de três formas: apenas nas folhas das plantas, nos solos juntamente com outros fertilizantes ou na combinação de aplicações na folha e no solo em um mesmo plantio.
“A melhor estratégia, normalmente, parte da complementação das três técnicas juntas. Mas, primeiro, é preciso entender cada uma separadamente”, conta Luiz Roberto. O professor do DCS Guilherme Lopes alerta: “entendendo cada técnica de adição separadamente, será possível definir doses adequadas para serem aplicadas, com o intuito de colocar nas partes comestíveis das plantas (por exemplo, nos grãos de arroz e feijão) quantidades dos nutrientes suficientes para atender à demanda nutricional de cada pessoa. Se a deficiência de um nutriente nos alimentos é problema, atingir a toxidez também pode ser. Os níveis de aplicação devem ser exatos”, frisa.
Testes em campo
Com a parceria da Epamig e do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM), os testes são realizados em áreas agrícolas nas cidades de Lavras, Lambari, Uberaba e Patos de Minas. A diversidade das regiões permite análises em diferentes tipos de solo e clima, com zinco (Zn), selênio (Se), ferro (Fe), enxofre (S) e iodo (I).
Mas, por que esses nutrientes? Os pesquisadores explicam que os produtores já adicionam zinco, composto responsável por causar mais vigor para a planta. Porém, hoje o composto é utilizado na agricultura em quantidades ainda insuficientes para repassar significativamente seus benefícios aos seres humanos. No organismo, o zinco exerce um papel essencial na estrutura e na função de enzimas vitais para a homeostase (condição que equilibra as composições químicas do organismo). A deficiência de zinco causa grave problema de comprometimento físico e intelectual.
Descoberto há cerca de 200 anos, o selênio é um micronutriente essencial para animais e humanos, devido às suas propriedades antioxidantes, e contribui para o bom funcionamento do sistema imunológico. A carência do mineral está relacionada ao aparecimento de certos tipos de cânceres e problemas cardiovasculares. A legislação já permite a adição de selênio em fertilizantes no Brasil, porém, seu uso está em fase de pesquisa.
Já o ferro atua principalmente na síntese (fabricação) das células vermelhas do sangue e no transporte do oxigênio em todo o corpo. O enxofre, além de ser essencial para a planta, facilita o transporte de outros minerais dentro do organismo humano. Sua deficiência pode causar distúrbios no sistema nervoso.
Com a tendência de diminuição no consumo de sal, especialistas apontam para a queda do consumo de iodo: é um novo risco para o funcionamento normal da glândula tireoide e o desenvolvimento de doenças, como bócio endêmico.
Os pesquisadores testam cada um desses compostos de forma separada ou em conjunto, conforme esclarece o engenheiro agrônomo da Epamig Fábio Martins. “Não é só aplicar na planta determinado nutriente. Precisamos saber qual a quantidade será absorvida e em até que ponto se coloca mais ou menos”, conta.
Em estufas controladas ou em campos de experimentos, os cientistas investigam se o nutriente ou coquetel aplicado na planta é benéfico ou não. “Entre os tratamentos propostos pelo HarverstZinc, dois deles são de coquetéis: ao mesmo tempo, aplicam-se zinco, selênio, ferro e iodo. Sabe-se que isso já pode ser usado para trigo e arroz, então estamos experimentando com soja e feijão”, disse Fábio.
Produtividade
Os pesquisadores são unânimes: além de ser a forma mais barata e eficiente para combater a má nutrição da população e prevenir doenças, a Agricultura Funcional abre um novo nicho de mercado de valor agregado para os produtores brasileiros.
Os mercados chineses e indianos já decretaram: a prioridade é importar alimentos enriquecidos para alimentar os seus mais de 2,7 bilhões de habitantes – 35% da população mundial. Juntos, os dois países compram 50% da produção agrícola do Brasil. “Somos o maior exportador de soja de alto valor de proteína para a China, retirando mercado dos Estados Unidos. Os compradores vão pagar mais caro pela qualidade dos nutrientes. Se não formos rápidos, vamos perder essa onda e arruinar o nosso agronegócio”, aponta o professor Luiz Roberto.
Nem é preciso vender para longe. “O mercado consumidor brasileiro é enorme e carente de alimentos biofortificados. Incentivos criados pela legislação poderiam, por exemplo, valorizar produtos enriquecidos por meio de certificações do arroz de Minas Gerais, que caiu de 10% para 0,5% do total produzido no país”, exemplifica Fábio Aurélio Dias Martins.
No Brasil, o maior caso de sucesso de políticas públicas envolvendo agricultura e saúde é de 1956, quando o médico e então presidente Juscelino Kubitschek decretou a obrigatoriedade de se adicionar iodo no sal para combater distúrbios da tireoide. A legislação brasileira de fertilizantes já recomenda a aplicação de zinco nos solos e, desde 2016, sugere a adição de selênio.
Fome Oculta
A fome oculta é um dos graves problemas mundiais. O número de pessoas adultas desnutridas no mundo é de 500 milhões, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). No total, 44% dos países vivem, ao mesmo tempo, sérios níveis de subnutrição e sobrepeso, incluindo obesidade – ambos são evidências de uma nutrição pobre. O fenômeno da fome oculta está relacionado a essa dupla carga de desnutrição. Ambos os fatores provocam uma carência de micronutrientes que, a longo prazo, favorece o desenvolvimento de uma série de doenças, como diabetes e câncer. “A biofortificação não quer prover um único alimento capaz de fornecer todos os nutrientes necessários. O ideal é que as pessoas se alimentem com uma dieta equilibrada e com qualidade nutricional. A biofortificação pode contribuir para que o indivíduo faça a ingestão da quantidade diária necessária para cada nutriente, a partir de culturas como a de arroz e a de feijão”, explica.
Outras pesquisas
No Brasil, diversos estados possuem alimentos que já foram testados para a biofortificação: além do arroz, já foram avaliados milho, soja, sorgo, feijão, batata-doce, abóbora e mandioca.
Confira a reportagem completa, acesse a revista Ciência em Prosa: https://issuu.com/dcom-ufla/docs/revista_cp_2_issuu
Reportagem: Karina Mascarenhas / Pollyana Dias - Jornalistas bolsistas DCOM/UFLA
Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.