Há 50 anos, pesquisas da UFLA colaboram para melhorar a qualidade do feijão carioca
O almoço e o jantar, geralmente, não são momentos em que se pensa em ciência. Mas ela está lá, no prato. Até mesmo o grão de feijão – tradicional na cozinha do brasileiro – é fruto de muita tecnologia. O feijão-carioca, por exemplo, está comemorando 50 anos em 2019. Nesse tempo, houve melhorias no aspecto dos grãos e na persistência da cor, na produtividade e no processo de colheita.
Para que alcançasse essa maior qualidade, várias pesquisas científicas foram feitas. Assim como o feijão-carioca, a UFLA comemorou meio século de seu programa de melhoramento genético do feijão, por meio do qual desenvolveu centenas de estudos para que esses grãos clarinhos e rajados de marrom pudessem ganhar a preferência do consumidor e se tornassem os mais consumidos do País. As pesquisas desenvolvidas deram origem a 119 dissertações de mestrado e 43 teses de doutorado – um volume que representa muito conhecimento acumulado à disposição das tecnologias que impulsionam a cultura.
De todo esse esforço, resultaram 12 novas cultivares de feijão, produzidas e recomendadas para o Estado de Minas Gerais, por meio de registro no Ministério da Agricultura. Elas são produto do trabalho conjunto de melhoramento genético com outras instituições, como a Universidade Federal de Viçosa (UFV), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a emmpresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig). O trabalho dá a sua contribuição ao aumento da produtividade do feijão no Brasil, que, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), passou de 660 Kg/ ha em 1968 para 1025 Kg/ ha em 2018.
De acordo com o professor do Departamento de Biologia (DBI) Magno Antônio Patto Ramalho, que se aposentou em 2018 e continua atuando na Instituição como voluntário, o investimento nas pesquisas de melhoramento genético do feijão traz ganhos em várias frentes: para o produtor, para o meio ambiente e para o consumidor. Entre os ganhos para o produtor, está a possibilidade de ter acesso a cultivares com características morfológicas que facilitam o processo de coleta mecanizada, por exemplo.
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A cultivar mais recente registrada pela UFLA e parceiros foi batizada de Uai, em homenagem a uma interjeição frequentemente utilizada pelos mineiros. Ela permite o cultivo de uma planta mais ereta, com várias ramificações também eretas – uma configuração propícia para a ação das colheitadeiras, o que agiliza o processo. Outra vantagem para o produtor é que as cultivares mais modernas, fruto do melhoramento, têm mais produtividade, porque são naturalmente mais resistentes a doenças. Assim,ele precisa utilizar menos defensivos. Também demandam uma área menor de plantio. É justamente por esses dois fatores que o meio ambiente sai ganhando.
O professor Magno calcula que seria necessário ocupar mais 1,65 milhão de hectares no Brasil com plantação de feijão, caso não tivesse havido o desenvolvimento dessas tecnologias. “Hoje o País tem 3 milhões de hectares de cultivo de feijão, devido à alta produtividade alcançada com o melhoramento genético. Se não fosse assim, precisaríamos de 4,65 milhões de hectares para atender à demanda – uma área extra que pode servir a outros fins, inclusive à conservação ambiental”, avalia.
E para o consumidor, quais são os ganhos diretos? O professor explica que o melhoramento genético busca, cada vez mais, atender às preferências das pessoas quanto às características dos grãos. “O consumidor quer um feijão-carioca sempre mais clarinho, de cozimento rápido e que preserve seu aspecto de cor por períodos mais longos. Temos alcançado esses resultados. Desenvolvemos cultivares cujos grãos mantêm- se claros e atrativos por cerca de cinco meses”, relata.
O processo de pesquisa para melhoramento genético do feijão na UFLA começou em 1968. Entre as primeiras linhagens de feijão avaliadas, já estava, nesse início, a carioca, que viria a ser recomendada para cultivo no ano seguinte pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Como o feijão-carioca se disseminou rapidamente graças às suas propriedades culinárias e ao potencial produtivo, alcançando boa aceitação no mercado, a partir do fim dos anos de 1970, o programa de melhoramento da Universidade concentrou-se em estudar especificamente essa variedade.
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Aspecto de algumas linhagens do grão carioca, obtidas pelo programa de melhoramento do feijoeiro da UFLA
As pesquisas de melhoramento genético podem ocorrer de diferentes formas
Introdução de cultivares: os pesquisadores testam linhagens de feijão que têm bom desempenho em outros estados ou países, para observar sua adaptação e produtividade em locais diferentes. A observação é feita por algumas safras, até se constatar que ela pode ser cultivada em grande escala naquela nova região.
Seleção de linhagens puras: a autofecundação de uma linhagem com uma característica desejada, por várias gerações, dá origem a uma linhagem pura, cujos descendentes terão, necessariamente, aquela característica genética. Um exemplo de sucesso desse método de melhoramento foi registrado no início do programa, ainda na então ESAL, com a obtenção da cultivar que ganhou o nome de ESAL 1, selecionada de uma população de feijão-pardo e que permaneceu em cultivo por inúmeros agricultores durante alguns anos, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
Hibridação: são feitos cruzamentos artificiais entre genitores – linhagens – com o objetivo de combinar, nas linhagens que serão descendência desses cruzamentos, fenótipos favoráveis, com características importantes, como resistência a doenças e tipo específico de planta ou de grãos. Após alguns anos de seleção na descendência, é identificada nova linhagem com as características planejadas, superior a ambos os genitores que foram utilizados no cruzamento inicial. A hibridação dos genitores é um processo natural, mas direcionado pelo pesquisador. É diferente da produção de transgênicos, em que o gene responsável pela expressão de um caráter desejável de uma planta, por exemplo, é extraído e inserido em outra planta de espécie diferente, que ainda não possui esse caráter. São cruzamentos impossíveis de ocorrer naturalmente.
O que é esperado de novas cultivares
- Planta com uma arquitetura que facilita o processo de colheita. A definição da planta com porte ideal vem mudando com o passar dos anos, assim como os métodos de manejo utilizados pelos agricultores. Inicialmente, a planta ideal era aquela com porte mais ereto possível e com uma haste principal, ou seja, com poucas ramificações. O principal objetivo de se obter plantas com essa configuração, na época, era diminuir as perdas de grãos, decorrentes da coincidência da época da colheita com o período das chuvas. Atualmente, com o desenvolvimento da colheita mecanizada, tem sido solicitado que as plantas sejam eretas e que apresentem muitos ramos bem eretos e hastes que enrolam, para facilitar que o molinete da colhedora recolha as plantas que foram cortadas, diminuindo, assim, as perdas na colheita.
- Resistência a doenças e redução da necessidade de uso de defensivos. O programa de melhoramento genético na UFLA investiu na resistência do feijão a algumas doenças importantes, como antracnose, mancha-angular, fusariose e o mofo-branco. São doenças que prejudicam a produtividade e a qualidade dos grãos, além de exigirem uso de defensivos, quando suscetíveis a eles.
- Cultivares desenvolvidas para serem produtivas, mesmo com mudanças climáticas. Ao longo do tempo, as condições do ambiente mudaram. E um dos modos de atenuar essas transformações é investir no melhoramento genético. É possível desenvolver cultivares mais adaptadas a determinadas condições ambientais.
- Grãos de fácil cozimento e aspecto agradável. O consumidor valoriza um feijão em que os grãos se conservem bonitos por mais tempo na embalagem, que cozinhem rápido e que, depois de prontos, tenham um aspecto capaz de agradar aos olhos e ao paladar.
Outras curiosidades sobre o feijão-carioca
- O feijão-carioca é o mais consumido do Brasil, exceto em quatro estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Ele teria sido encontrado ao acaso, no final da década de 1960, em uma propriedade do estado de São Paulo. A planta, diferenciando-se das
demais, foi encontrada no meio da lavoura por um agricultor, que a levou para análises no IAC. A explicação provável de sua ocorrência natural é a mutação. A cultivar recebeu esse nome porque o aspecto do grão se assemelha a uma raça de porcos caipira chamada carioca.
- Com todos os avanços tecnológicos do feijão, ele se tornou importante para a vertente empresarial da cultura do feijão no Brasil, mas tem um papel ainda mais importante para a agricultura de subsistência e o pequeno produtor. Os benefícios do melhoramento alcançaram a todos.
- Até a inserção do feijão-carioca no mercado, o cultivo no Brasil era, tradicionalmente, de feijões com coloração única: rosinha, roxinho, jalo, amarelos, pretos, etc. Os bicolores, como os de cor bege com vermelho, eram mais comuns no consumo como saladas.
Foco no futuro, com janelas para o passado
As pesquisas para o melhoramento genético do feijão buscam desenvolver as melhores cultivares para atender às necessidades do presente e do futuro. Mas mesmo diante de tanta evolução, o passado tem o seu espaço. Quando bate aquela saudade de um produto que existia antes, e ele já não está mais disponível, os recursos da ciência também podem ajudar. Foi o que ocorreu com o produtor rural Walter Alvarenga, de Campo Belo. A pesquisadora da Embrapa Ângela de Fátima Barbosa Abreu contou a história dele à Ciência em Prosa.
Walter guardava na memória uma cultivar de feijão-pardo que era comum na sua infância. “Meu pai era muito cuidadoso com nossa alimentação. Buscava as melhores sementes, e ele gostava muito daquele feijão. Mas com o passar dos anos, o feijão já não era mais encontrado naquela forma genuína que tínhamos no passado”, conta o produtor. Então Walter esteve em Lavras e comentou com um pesquisador da Emater, Edmundo Modesto de Melo, sobre o seu desejo de plantar novamente a linhagem, comum há 50 anos, e que marcou a tradição de sua família. A equipe de trabalho do melhoramento genético resolveu ajudar e descobriu que, no Banco de Germoplasma da UFLA, havia a tal cultivar, mantida lá há quase meio século: era a ESAL 506.
Feitas as devidas multiplicações das sementes, elas deram origem a 30 quilos do feijão, que foi encaminhado ao produtor. Logo ele plantou e conseguiu colher os grãos que tanto valoriza. “Foi bom demais. Deu tudo certo. Distribuí alguns quilos para os vizinhos e conhecidos poderem plantar também”, conta. Um dia de campo foi realizado na cidade de Campo Belo em maio de 2019, promovido pela Emater, e a experiência do produtor foi compartilhada com os participantes.
De acordo com o professor Magno, o Banco de Germoplasma da UFLA guarda todas as cultivares que já passaram pela instituição. É uma espécie de história viva do programa na UFLA – história viva do feijão. “Em casos curiosos como esse, do senhor Waltinho, vemos o quanto a pesquisa é importante em diferentes dimensões. Nessa situação, a manutenção desse histórico permitiu a uma comunidade reviver o passado, que é parte da identidade dessas pessoas. Se não fosse pela estrutura de pesquisa que a universidade mantém, não seria possível”.
Walter, que produz feijão apenas para o consumo doméstico, reconhece que essa cultivar - tão importante para sua família - não tem tanto valor comercial atualmente, já que as pesquisas conceberam cultivares que atendem a novos parâmetros de produção e de consumo, mas acha importante conciliar o avanço tecnológico e a tradição.
União de forças para melhores resultados
A associação de esforços entre UFLA, Embrapa Arroz e Feijão, UFV e Epamig permite superar um dos desafios das pesquisas de melhoramento genético do feijão: a necessidade de avaliar o desempenho das plantas simultaneamente em número maior possível de ambientes. Com a parceria, experimentos são feitos em mais de 40 ambientes em cada biênio, incluindo outros estados. Após avaliação dos experimentos, os membros das instituições se reúnem para escolher a linhagem que será recomendada aos agricultores, sendo ela registrada em nome de todas as instituições. A iniciativa conjunta já recomendou 12 novas cultivares. As sementes são, então, disponibilizadas aos produtores pelo serviço de produção de sementes.
Reportagem: Ana Eliza Alvim - jornalista Dcom
Imagens: Luiz Felipe Souza - Editor/Dcom
Edição do vídeo: Rafael de Paiva - estagiário Dcom/UFLA
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Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.