Professora da UFLA fala sobre o enfrentamento à Covid-19
Desde o surgimento da pandemia do novo coronavírus, muitas dúvidas vêm surgindo, fato que tem levado a população a questionar se tal informação referente à Covid-19 procede, ou se seria mais uma “fake news”. A professora do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Lavras (DSA/UFLA) Míriam Monteiro de Castro Graciano, integrante do Comitê Especial de Emergência de prevenção ao coronavírus (CEE Covid-19 UFLA), faz esclarecimentos sobre a doença. Míriam trabalha em diversas pesquisas que envolvem epidemiologia, saúde e sociedade e práticas de saúde na família e comunidade. Ela esclarece como uma situação pandêmica pode ser contornada, e relembra situações em que a saúde entrou em estado crítico no
País e no mundo.
Acompanhe a entrevista com a pesquisadora, feita pelo Núcleo de Divulgação Científica (NDC/UFLA).
Em termos práticos, qual a diferença entre os termos endemia, epidemia, pandemia e surto?
Nós temos quatro conceitos em epidemiologia que são importantes: endemia, epidemia, pandemia e surto. Endemia e epidemia são termos que vêm do grego endemos; é o que mora no local, já epi refere-se ao que vem de fora. Então, uma endemia é algo que é comum a um local, como a doença de Chagas, no norte de Minas, ou a malária, na região amazônica. São doenças já estabilizadas na população, que possuem um número rotineiro de casos. A epidemia acontece quando se tem um aumento súbito no número de casos, ou quando aparece uma doença nova que não existia em determinado lugar. Então usamos o termo geralmente para doenças novas ou outras que estavam controladas, mas que tiveram um grande número de casos. Por exemplo, recentemente tivemos um pico epidêmico de sarampo.
Uma epidemia pode comporta-se de dois modos: ser explosiva ou propagada. Falamos de epidemia explosiva quando o contágio é muito rápido: uma única pessoa consegue transmitir para várias outras pessoas, com aumento muito rápido de casos. Já a epidemia propagada tem sua expansão mais lenta. A Covid-19 é explosiva - e a preocupação em achatar a curva é justamente para transformar uma epidemia explosiva em epidemia propagada, auxiliando e desafogando, assim, o sistema de saúde, de forma que dê conta de atender e salvar o maior número de pessoas possível.
Temos também o surto, que é um aumento súbito de casos, mas de forma localizada. Quando dizemos “está havendo surto de conjuntivite ou diarreia”, em geral, isto ocorre em uma escola, em um quartel, um restaurante. Ou seja, o crescimento do número de casos é rápido, mas acontece em um único local, pequeno e restrito.
A pandemia é quando uma epidemia se alastra por mais de um país ou um continente.
Quando uma doença atinge o pico de pandemia, ela pode se reverter? Ou isso só acontece quando há uma cura e não há mais casos?
Não, não é necessária uma cura ou vacina para que uma epidemia entre na fase de regressão, aquele momento em que atinge seu pico máximo de disseminação e começam a diminuir o número de casos.
Quando metade da população já foi infectada pela doença, é natural que a curva de casos comece a descer, porque as pessoas vão ganhando imunidade e, assim, vai reduzindo também a transmissão. Com relação ao vírus da Covid-19, ainda não sabemos se a imunidade adquirida é duradoura ou não. Sabemos que existem três sorotipos diferentes e que o vírus que está circulando no Brasil é o mesmo da Itália, e não o que circulou na China.
No caso da Covid-19, que é uma doença de comportamento explosivo, é importante respeitar todas as medidas restritivas de distanciamento social, e só sair de casa quem realmente precisa. Assim, cai o fluxo de pessoas na rua e, automaticamente, diminui a velocidade de aumento no número de casos. Não é possível evitar que a pessoa contraia a doença, mas é possível fazer com que não haja uma contaminação em massa. Por isso, é importante fechar cinemas, teatros, igrejas, campos de futebol e demais locais que podem causar aglomeração. Para reverter, é preciso compromisso de todas as pessoas para que não ocorra a explosão de casos, e sim que eles surjam mais vagarosamente, para não sobrecarregar os serviços de saúde.
O que nós, agentes e profissionais de saúde não queremos é uma curva muito acentuada. Buscamos trabalhar para que ela forme um platô, e não uma montanha.
Quais fatores ajudam os órgãos responsáveis a definir ações para evitar a propagação do vírus?
Conhecer o comportamento da doença é o que ajuda a ter as medidas de prevenção. A Covid-19 é uma doença de transmissão “naso-oral” - o espirro e a saliva transportam o vírus. Mas este, em especial, é um tipo de microrganismo que fica muito tempo no ambiente, permanecendo nas mãos, em metais, madeiras, etc.
Então as pessoas precisam ter mais medidas de higiene, manter a casa sempre limpa. Se precisar sair para trabalhar, o ideal é, ao chegar a casa, tomar banho, lavar os cabelos, além lavar sempre muito bem as mãos e evitar tocar olhos, nariz e boca. Também é essencial não usar dentro de casa os mesmos sapatos utilizandos na rua. Outra medida é o uso de máscaras caseiras, para diminuir a disseminação do vírus ao tossir ou espirrar em espaços públicos. Desaconselhamos o uso de máscaras cirúrgicas ou N95, porque elas são essenciais para os profissionais de saúde, que estão muito expostos, além de já estarem em falta no mercado mundial. Não queremos que esses profissionais adoeçam, pois precisamos deles para cuidar de nós, não é mesmo?
Como ainda não temos vacina, e uma vez que é necessário, em média, um ano de estudos para que vacinas sejam desenvolvidas, o melhor é trabalhar com as medidas preventivas, medidas de higiene de um modo geral e saneamento básico, atitudes que são de fundamental importância para o enfrentamento de qualquer doença infecciosa.
No Brasil, já sofremos com outras pandemias?
Nós tivemos a pandemia da Aids, na década de 1980, a Sars, o H1N1. A Hepatite C também é pandêmica, já que ela atinge pessoas no mundo inteiro.
A gripe espanhola também foi uma epidemia explosiva, que ocorreu no início do século passado, por volta de 1918 no Brasil, mas naquela época, por não ocorrer tantas viagens, nacionais e internacionais, ela demorou um pouco para se disseminar.
A diferença que se nota na Covid-19 é que ela é altamente contagiosa. O vírus se espalha muito rápido. Uma pessoa contamina, em média, outras três pessoas em 24 horas, o que torna muito difícil o controle da transmissibilidade.
Em casos de epidemia, o Brasil tem agido da forma correta. Na gripe espanhola houve, de imediato, o isolamento das pessoas contaminadas para serem tratadas, e, no caso da Aids, o País desenvolveu campanhas educativas e não alarmistas. As campanhas incentivando o uso e distribuição das camisinhas surtiu um grande efeito no controle dessa pandemia.
É importante lembrar, ao falarmos da Covid-19, que quem espalha a doença não é o paciente que está no hospital, mas sim quem circula pelas ruas e não apresenta sintomas, ou tem sintomas leves de uma gripe.
Não se deve alarmar a população. A Covid-19 é uma doença que pode, em alguns casos, levar à morte, mas ela não possui letalidade tão alta assim. O que preocupa, entretanto, é a sobrecarga do sistema de saúde, com adoecimento de profissionais e ausência de toda a estrutura necessária para atender a um grande número de casos graves ao mesmo tempo.
A vantagem que temos é que possuímos mais conhecimento agora do que tínhamos em 1918 e 1980, tanto sobre a biologia, química e comportamento da doença. A desvantagem é que somos um país com grandes diferenças sociais. Uma das medidas necessárias - o isolamento domiciliar - caso seja constatada a doença, já não é viável para o Brasil, pois, como se isola o doente em uma casa com dois cômodos em que moram dez pessoas? Por isso é preciso pensar em formas de internação para casos leves, locais onde o isolamento do indivíduo portador do vírus seja de fato viável.
A preparação de estádios para servirem de locais para acolhimento de doentes é normal em uma situação como essa?
Todos os locais que puderem ser transformados em hospitais de campanha serão muito valiosos. Não só estádios, mas também hotéis, escolas, universidades, dentre outros lugares. Dessa forma, será possível acolher os casos que não estão com quadro grave para tratamento e propiciar o devido isolamento.
Quais os principais fatores que podem explicar as diferenças de consequências de uma pandemia entre um país e outro?
São diversos, começando pelo clima. Alguns estudos indicam que altas temperaturas aniquilam o vírus e isso é uma vantagem para nós brasileiros, pois iniciamos a pandemia no final do verão e início de outono. Nos demais países o alastramento da Covid-19 começou no inverno, com temperaturas muito baixas.
A característica demográfica também conta muito: cidades populosas, como São Paulo, tendem a registrar inúmeros casos de contaminação.
Condições de moradia, saneamento básico e acesso a uma alimentação balanceada também são fatores que influenciam muito na questão pandêmica. Pessoas desnutridas acabam desenvolvendo casos mais graves, pois não possuem um sistema imunológico fortalecido.
A facilidade de locomoção também entra aqui. Hoje, os meios de transportes são utilizados por inúmeras pessoas, os voos facilitam ida e vinda de diferentes partes do mundo, o que dissemina rapidamente uma doença.
Hábitos de higiene, idade, tabagismo são outros fatores que influenciam o agravamento ou não do quadro clínico da pessoa contaminada. O tabagismo é característica comum em alguns países da Europa.
A qualidade do serviço de saúde também faz diferença quando se trata das consequências de uma pandemia. Um serviço bem estruturado, com atendimento adequado à população doente, é essencial. Por exemplo, alguns países contam com muita tecnologia, mas não têm sistema público de saúde.
Ter um sistema de saúde pública, como o Brasil possui (O SUS), traz qual diferencial para o país num momento de pandemia?
São muito comuns as críticas ao Sistema Único de Saúde brasileiro. Ele tem vários problemas, como remunerar mal os profissionais e pagar pouco pelos procedimentos, o que leva muitos profissionais de saúde, assim como a parcela que tem mais recursos da população, a optarem por convênios particulares.
Mas vale lembrar que o SUS tem 30 anos de história; é um sistema que foi muito bem pensado e estruturado, com seus vários níveis de atendimento, com porta de entrada na atenção primária, para depois o paciente ser encaminhado para um atendimento hospitalar ou especializado. Cito aqui os postos de atendimento nos bairros, que fazem o acompanhamento da saúde da família. Ressalto também as campanhas de vacinação no Brasil, desenvolvidas pelo SUS, que são muito bem feitas.
Temos um sistema público de saúde universal e gratuito que vai, dentro do seu limite, fazer o melhor para atender os infectados. Muitos países do primeiro mundo não têm atendimento gratuito e, com isso, a população mais carente e vulnerável fica impossibilitada de receber atendimento médico adequado.
O SUS, com todos os seus problemas, está ali para atender, com profissionais preparados, dispostos a lutar para a mitigação dessa doença que tem afetado o nosso País.